Repouso


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HOTEL ROOM

(Edward Hopper, 1931)

A mulher solitária que se sentou na cama
finge ler um livro onde não há nada escrito;
despiu-se da roupa suja, cansada da viagem,
das horas de trabalho, do fumo e da maquilhagem,
da vida sonora que percorre as ruas intermináveis
e dos sonhos possíveis nos dias laboráveis.
Quando a luz se desfez em azul, em branco e em âmbar,
deixou-a espalhar-se pelos cantos do quarto
e ficou meio desnuda, tão só como antes,
com as pernas muito juntas, as mãos recolhidas,
de costas para a janela que lhe oferece o dia,
olhando o branco do livro, procurando nele companhia,
compondo um triângulo com o seu penteado,
os sapatos por terra e o chapéu levantado.
A mulher solitária é apenas uma imagem,
tal como a cómoda e também a bagagem
e o branco da cortina, tão espesso como gasoso,
com uma atitude ambígua e um certo ar duvidoso.
As linhas limitam as cores e os matizes
como a onda que quebra o seu cabelo tão liso;
a claridade violenta, sobre o lençol preciso,
incendeia o possível território do gris;
somente a sombra permite o repouso dessa cara
para pousar o olhar na página clara,
a solidão humilde que reside no silêncio
ou o que o mesmo olhar inscreve nela:
uma paisagem, uma história, e quem sabe uma figura
que a olha e se detém transformada em leitura.

Havia uma outra mulher num compartimento
do combóio: também lia. Havia o céu rubro.
Havia ali, noutro aposento, uma mulher sentada,
a penumbra toldada pela luz dissimulada
e a janela aberta ao azul do céu;
a mulher que esperava, solitária, no motel,
e a mulher desnuda, vestindo a camisa
num quarto obscuro que era verde e gris.
Outras mulheres, perdidas em alguma cidade,
quem sabe contemplando também a solidão,
a partir de uma poltrona, num ecrã pálido,
na claridade deserta que encerra a janela,
nos pequenos reflexos de um grande aparador
ou, se por acaso pinta os lábios, num retrovisor.

Daqui a pouco, quando adormecer, a cortina mover-se-á,
e o odor do tempo suave será tão ténue
que parecerá que o dia transcorre noutro lugar.
Esse odor do ar, como se de um mar distraído.
Sem o ruído dos carros passando pela avenida,
o tic-tac do relógio será uma ajuda
para reencontrar, a destempo, as horas de descanso
perdidas na noite do dia anterior.
Corredores e quartos irão retomando vida
e não saberão que ela, adormecida, os olvida
na luz indistinta de um dia indiferente
que tem o matiz de um sonho na sua mente.

Porque o instante que dura tanto como um olhar
representa as coisas de forma diagonal
na página branca que furtou a luz.
Estabelece parte das regras do jogo, é um hábito
que não explica a claridade do avesso
ou dos extremos das coisas que algum marco serena:
a mulher solitária que se sentou na cama
é a mulher do livro que ela mesma escreveu.



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